31 de outubro de 2008

porque é que existe um trampolim no pólo norte?
para o urso polar.

porque é que eu comecei a ler antónio lobo antunes?
por causa desta crónica da visão.


"Parece mentira mas neste retrato de escola, aquele ali atrás sou eu. Não desse lado, do outro, vai andando com o dedo se fazes favor, o quinto a contar da esquerda na penúltima fila, essa não é a penúltima, é a antepenúltima, exactamente, aí, penúltima, agora vai andando com o dedo em sentido contrário, devagarinho, o gordo, o de óculos, o ruivo que a preto e branco não se percebe que é ruivo, não se percebem as sardas e a seguir ao ruivo, pronto, este teu criado, talvez o único que não sorri, já preocupado, já grave, já aflito com os mecanismos do mundo que teimam em excedê-lo, repara na franja, nos braços cruzados, na ruga (a ruga, essa, percebe-se) a dividir-lhe a testa, nem era feio pois não, não se pode garantir que bonito mas pelo menos as feições regulares, foi mais tarde que fiquei com o nariz assim quando a minha madrasta bateu a porta no momento em que eu ia a entrar, não era feio nem era competente na ginástica, a minha madrasta dizia que me pesava o rabo, dizia que nunca tinha visto nada tão desajeitado na vida, quando se escolhiam as equipas de futebol era sempre o último, a minha madrasta a reflectir no assunto
- O teu pai também nunca foi grande espingarda em nada
e portanto não ser grande espingarda é uma questão hereditária, não é defeito meu e além disso o desporto não me interessava por aí além, ficava sentado numa pedra a contar as formigas do carreiro e a preocupar-me com o meu rabo pesado, isto na escola, no liceu, na tropa, no emprego não tanto porque não tinha de correr nem dar cambalhotas, aliás no emprego até convém não correr nem dar cambalhotas que o chefe quer-nos compostos e de gravatinha no sítio, se possível pausados, a explicar tudo por ordem aos clientes e pausado sou, o facto de me pesar o rabo ajuda à solenidade, não há problema que não tenha compensação, não é, e julgo que foi isso que te atraiu em mim, o vagar, a educação, o método, a ruga que desde pequeno, na penúltima fila (não na antepenúltima, enganaste-te outra vez) me acompanha, deves ter visto a ruga e pensado
- Até que enfim um homem como deve ser
e começámos a ir ao cinema aos sábados, como amigos, nada de abusos, eu repeitador, delicado, sem mãozinhas marotas, levaste-me a jantar à tua mãe, ofereci-lhe uma orquídea e a tua mãe
- Até que enfim um homem como deve ser
a contar-me, desde o princípio, os dramas da vesícula e eu, a cada pausa dela
- Pois claro
interessado, atento, posso ser uma desgraça na ginástica e no futebol mas interessado, atento
- Pois claro
empenhadíssimo em vesículas, ao terceiro ou quarto jantar um beijo nas escadas, sem arrebatamento nem exageros, casto, breve, e então começou, pausada como eu, a história do enxoval, do andar alugado, dos papelinhos no Registo, dos beijos um pouco mais frequentes, um pouco menos castos mas sem exageros, claro, e no entanto o teu perfume e as tuas pernas entonteciam-me, e no entanto apetecia-me, palavra de honra, acariciar-te o cabelo, cheirar-te a pele, apertar-te, desculpa a franqueza mas apetecia-me apertar-te, sentir-te os ossos, a barriga, o que tenho vergonha de contar, escrevi-te uma carta a falar nisso, andei séculos com ela no bolso e não ta mostrei por decoro, por pudor, por receio de escandalizar-te, a tua mãe
- Um homem como deve ser um bocadinho tímido
a espreitar-me melhor mas continuando a simpatizar comigo dado que mais ninguém lhe aturava os caprichos da vesícula, a tua mãe a cogitar - Não será maricas por acaso?
e não sou maricas, que horror, sou apenas atento e sensível, sou o quinto a contar da esquerda da penúltima fila, vai andando com o dedo e encontras-me conforme me encontras aqui no sofá ao teu lado desde há treze anos (que passaram num instante) a tua mãe acabou por falecer não da vesícula, de um autocarro que em lugar de incluir lá dentro as pessoas que aguardavam na paragem as levou a todas, empurrando-as com o pára-choques, até ao muro a seguir, onde as espalmou contra um anúncio de tourada, a tua mãe ficou nos chifres até os bombeiros a descolarem do cartaz e ainda hoje continuamos em tribunal com a companhia de transportes, o sofá tem três lugares e o dela, o do meio, vazio, nós dois nas pontas e o do meio vazio, dá-me a impressão que na cama também nós dois nas pontas e o lugar do meio vazio, se tento ocupá-lo tu no escuro
- Estou cansada
tu no escuro - Dói-me a cabeça
tu no escuro - Tem paciência Fernando agora não
de maneira que eu na ponta de novo, parece mentira mas na tua vida aquele ali atrás sou eu, há ocasiões em que me pergunto se no caso de dar umas cambalhotas como deve ser ou uns chutos certeiros te interessarias por mim e depois chego à conclusão que estou a ser injusto, te interessas, é uma questão de oportunidade, um dia destes chego a casa e tu toda apinocada à minha espera, tu
- Chega cá
tu
- Seu mauzão
tu, a segurares-me o queixo com o indicador e o polegar
- Quem é a minha coisa mais linda?
e a tua coisa mais linda é aqui o rapaz, não se pode dizer que bonito mas pelo menos as feições regulares, o nariz assim de quando a minha madrasta bateu a porta de repente no momento em que eu ia a entrar mas o resto normal, sou a tua coisa mais linda, sou o teu mauzão e valeu a pena, não é, ter esperado todo este tempo para sermos felizes."

in aquele ali atrás sou eu de antónio lobo antunes (revista visão n.º 675 - 2006)

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